Erradicar, para sempre, uma "mancha negra" da história do Brasil. Este tem sido, durante anos, o clichê exaustivamente repetido para explicar a queima dos papéis de registro da escravidão ordenada por Rui Barbosa enquanto Ministro da Fazenda e levada a cabo por seu sucessor na pasta. De tão propalada, esta versão tem contribuído para sedimentar uma série de incorreções, preconceitos e injustiças históricas. É preciso lembrar que um intelectual como Rui Barbosa jamais seria ingênuo a ponto de acreditar que a destruição física de documentos depositados no Ministério da Fazenda fosse suficiente para apagar da memória nacional a infâmia de quatro séculos de escravidão. Portanto - e com a ressalva de que a incineração de qualquer papel público, por menos importante que possa parecer, é a princípio altamente condenável - é preciso compreender as motivações embutidas na sua atitude. Rui Barbosa buscava evitar que uma campanha indenizatória movida por ex-senhores de escravos - com base justamente nos registros citados - viesse dar um contragolpe à Lei Áurea. Com efeito, depois da abolição, as pressões por indenizações começaram a ganhar corpo. Apenas 11 dias depois da lei emancipando os escravos, foi levado à Câmara um projeto de lei propondo ressarcimento pelos prejuízos advindos com a extinção do trabalho servil. Entre julho e novembro de 1888, nada menos do que 79 representações desse teor foram encaminhadas ao Legislativo. Já em plena República, durante o Governo Provisório, criou-se um banco exclusivamente para receber indenizações. Seus proprietários foram diretamente a Rui, Ministro da Fazenda, que respondeu seca mas enfaticamente: "Mais justo seria, e melhor se consultaria o sentimento nacional, se se pudesse descobrir meio de indenizar os ex-escravos, não onerando o Tesouro. Indeferido. 11 de novembro de 1890". O despacho foi noticiado com destaque na imprensa, levando a Confederação Abolicionista a conferir um diploma a Rui Barbosa. As pressões, porém, continuaram e a argumentação não foi suficiente para barrar as pretensões dos escravocratas. Rui buscou outra solução. Em nome da "fraternidade e solidariedade com a grande massa de cidadãos que, pela abolição do elemento servil, entrava na comunhão brasileira", mandou queimar, em 14 de dezembro daquele ano, os documentos do Ministério. Mais do que uma motivação ética, natural em um abolicionista de primeira hora, o ato serviu para destruir os documentos necessários à indenização. Ao contrário do que se costuma afirmar, o gesto de Rui foi uma decisão de natureza política e, sobretudo, econômica.
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